Presença viva da morte: Dois poemas em análise

Capela dos Ossos, Évora/ Portugal. Tal monumento lembra-nos da transitoriedade da vida.
UMA IDEIA FIXA

REDUNDÂNCIAS
Ferreira Gullar

Ter medo da morte
é coisa dos vivos
o morto está livre
de tudo o que é vida

Ter apego ao mundo
é coisa dos vivos
para o morto não há
(não houve)
raios rios risos

E ninguém vive a morte
quer morto quer vivo
mera noção que existe
só enquanto existo

* * * * * * *
Esse poema de Ferreira Gullar (do livro Muitas vozes) é seco, direto, belamente reflexivo. A ideia de vida e morte aqui é simples e encantante, contudo redundante, repetitivo, como o próprio título do poema diz.
Para o eu lírico (a voz fictícia do poema), só quem vive tem a ideia fixa da morte; quem está morto não tem noção do próprio estado em que se encontra, estado de puro nada. Basta ler os primeiros versos para assim entendermos. 
Para o morto, em seu estado atual (redundante escrita!), não há r(a)ios (metonímia: tempestades — metáfora de tristezas e obstáculos), rios (metáfora das travessias da vida reveladas nas passagens do Tempo), e ri(s)os (metáfora das alegrias). Em verdade, para o morto nem o passado existe (oitavo verso: “não houve”/ não existiu). A repetição sonora da consoante /R/ (nono verso: “raios rios risos”), sem a pausa forçada das vírgulas, dá a impressão de passagem veloz das imagens da vida — imagens condenadas ao nada.
Contudo, estando ou vivo, ou morto (contraposição de termos opostos — antítese), ninguém vive a morte em si (eis um paradoxo belamente simples). O vivo não sabe o que é, de fato, a morte, e o morto não sabe que está morto (e nem tem consciência desse não saber…): a noção de morte só existe para quem está vivo. Bela contradição, e contradição da vida!…
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O DESEJO MORTAL DE QUEM VIVEU VERDADEIRAMENTE

MORTE
Murilo Mendes

É doce o pensamento da morte
Quando o corpo exausto de prazer ou de dor
Sofre os seus limites.
É doce o pensamento da morte

Quando o espírito enfraquecido pela revolta
Não se aplaca nem mesmo diante de Jesus.
Morte, suave música da morte,
Devolve-me ao sono inicial de antes do pecado.

Não quero os cantos celestes nem a palma da glória.
Talvez eu queira o nada absoluto:

(Até mesmo o pensamento da morte ainda é vida.)

* * * * * * *
Todos aqui se lembrarão de uma leitura analítico-interpretativa do poema “Redundâncias”, de Ferreira Gullar. Em tal poema notamos a descrição argumentativa da realidade em que se encontra o morto, — realidade, aliás, de que ele não tem noção, já que a ideia de morte pertence aos vivos. Em este poema de Murilo Mendes parece a morte ser a grande solução final (ainda que desconhecida) para o corpo que experimentara os extremos da vida (prazer/ dor).
Assim como a música, que tem o poder de acalmar a alma, a morte, para o eu lírico, tem o poder, por ele desejado, de devolver o ser a um estado de origem (o nada). A vida, assim podemos dizer, faz o espírito estar em pecado, em fraqueza — fraqueza consequência da revolta implacável.
O desejo do nada absoluto resulta da vida. Claro deixemos, o eu lírico não sabe exatamente se o seu desejo é possível, ou provável. Não quer ele a redenção (“Não quero os cantos celestes nem a palma da glória.”).
Buscando, portanto, o nada “puro”, não deseja nem o pensamento da morte, — pensamento que o revela vivo (ecoando aqui a célebre sentença de Descartes: “Penso, logo existo”). Um nada tão bem descrito por Ferreira Gullar em “Redundâncias”…

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