Lembrar para esquecer

Na praia, a árvore aparenta ecoar o poema.
MODINHA
Cecília Meireles

Tuas palavras antigas
deixei-as todas, deixei-as,
junto com as minhas cantigas,
desenhadas nas areias.

Tantos sóis e tantas luas 
brilharam sobre essas linhas,
das cantigas — que eram tuas —
das palavras — que eram minhas!

O mar, de língua sonora,
sabe o presente e o passado.
Canta o que é meu, vai-se embora:
que o resto é pouco e apagado.

* * * * * * * 
“Esquecer para lembrar”, eis uma sentença paradoxal de Drummond, — aliás, título de um livro seu. Há, porém, quem busque lembrar para esquecer. Parece ser esse “lembrar para esquecer”, na passagem do tempo, a essência dessa bela canção de Cecília Meireles. Leiamos tais versos.
O primeiro verso nos revela um possível diálogo (“tuas”, pronome possessivo de segunda pessoa). As palavras, “antigas” (adjetivo que já aponta para a temporalidade do momento lembrado), foram deixadas, junto com as cantigas do eu lírico, desenhadas nas areias. Aqui já há uma alusão ao espaço marítimo de puros contrastes encarnando o Tempo e a Eternidade (areias — ruínas do tempo destruidor; mar — uma grandeza da eternidade renovadora).
Palavras compõem o ritmo das cantigas; cantigas seguem o ritmo das palavras. Assim, “minhas” palavras são cantigas; “tuas” cantigas são palavras. Confundem-se, iluminadas, as linhas que resistem aos dias (“tantos sóis”) e às noites (“tantas luas”); que, enfim, resistem à passagem do tempo (portanto dias e noites são parte de um todo, um todo que é essa passagem: metonímia). Mas a resistência não parece duradoura…
Notemos, para a leitura correta dessa resistência não duradoura, alguns detalhes importantes. Um é que, nas duas primeiras estrofes, predominam os verbos em tempo passado (“deixei”, “brilharam”, “eram”); já na terceira estrofe predominam os verbos em tempo presente (“sabe”, “canta”, “vai”, “é”). Outro detalhe, na terceira estrofe, é o desaparecimento da segunda pessoa com quem dialogava o eu lírico. Tais detalhes reforçam a ideia de algo que se perdeu nessa passagem do tempo…
O mar, de língua sonora (imagem humanizada da onda) sabe o presente e o passado (pois é uma grandeza da Eternidade). O eu lírico, solitário, pede para que o mar cante apenas o que é dele, — pois o resto é apenas fantasma de uma lembrança vivida. Lembrar para esquecer.

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