A presença de quem se faz ausente: Fernando Pessoa

CASTAGNETO, Porto do Rio de Janeiro, 1884.
[Ó NAUS FELIZES…] 
Fernando Pessoa

Ó naus felizes, que do mar vago
Volveis enfim ao silêncio do porto
Depois de tanto noturno mal —
Meu coração é um morto lago,
E à margem triste do lago morto
Sonha um castelo medieval…

E nesse, onde sonha, castelo triste,
Nem sabe saber a, de mãos formosas
Sem gesto ou cor, triste castelã
Que um porto além rumoroso existe,
Donde as naus negras e silenciosas
Se partem quando é no mar manhã…

Nem sequer sabe que há o, onde sonha,
Castelo triste… Seu spírito monge
Para nada externo é perto e real…
E enquanto ela assim se esquece, tristonha,
Regressam, velas no mar ao longe,
As naus ao porto medieval…

* * * * * * *
Poema estranho de complexa sintaxe, ainda que lindo na simplicidade da narrativa. Percebe-se nele algo característico não só da poesia pessoana, mas também de uma muito praticada vertente da poesia moderna: a presença, sentida pelo leitor-viajante, de um eu lírico que se faz ausente (“Meu coração é um morto lago/ E à margem triste do lago morto/ Sonha um castelo medieval…”, versos de pura arte do estranhamento…). Ainda que o coração do eu lírico seja um lago morto (morte: ausência), esse “lago morto” tem a noção exata de sonhar, à sua margem, (espaço também do coração) um castelo medieval (sonhar: vivacidade, presença de espírito). Ao sonhar o castelo, o coração ocupa o espaço dele, espaço onde se encontra uma triste castelã de belas mãos (ocupante do castelo) que ignora a existência de um porto, de onde partem naus (navios) ao amanhecer — naus que atravessam a escuridão maligna dos mares…
Não só ignora a existência de outras naus, mas também ignora a existência do próprio espaço em que se encontra, espaço onde sonha o coração, que o imaginara à margem do lago morto, lago morto que é o coração… Castelã que se esquece, estando triste, enquanto naus de existência ignorada por ela regressam ao porto medieval.
Atentemos agora para a sintaxe: notemos que o pronome demonstrativo “[n]esse” está separado do substantivo “castelo” (algo incomum na língua portuguesa). Tal procedimento ocorre outras vezes (versos oito e nove, treze e quatorze). Pausas forçadas feitas por vírgulas e reticências, exigindo quase total silêncio (palavra cuja ideia aparece, consideravelmente, no poema), o coração, contudo, se transborda em beleza de imaginação pura — um coração que se faz ausente na presença do leitor…
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A versão deste poema é uma cópia cedida por Fernando Pessoa, em 1912, a Luís de Montalvor. Há outra versão, com o título "Sonho", datada em 10 de junho de 1910.

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