Mística miséria

Desenho do cartaz Morte e vida severina, no TUCA, anos 60/ 70.
CEMITÉRIO PERNAMBUCANO
(Nossa Senhora da Luz)
João Cabral de Melo Neto

Nesta terra ninguém jaz,
pois também não jaz um rio
noutro rio, nem o mar
é cemitério de rios.

Nenhum dos mortos daqui
vem vestido de caixão.
Portanto, eles não se enterram,
são derramados no chão.

Vêm em redes de varandas
abertas ao sol e à chuva.
Trazem suas próprias moscas.
O chão lhes vai como luva.

Mortos ao ar-livre, que eram,
hoje à terra-livre estão.
São tão da terra que a terra
nem sente sua intrusão.

* * * * * * * 
A dura realidade, aqui descrita pelo poeta João Cabral, esconde um misticismo amargo e penoso; não há como deixar de reconhecer nuanças de uma passagem bíblica que lembra ao homem que ele é pó, e ao pó retornará (Gênesis 3, 19). A leitura dos últimos versos aponta para tal passagem; e, reforçando a leitura, o mar não é cemitério de rios por serem ambos — mar e rio — formados pela substância “água” (primeira estrofe).
O eu lírico (a voz fictícia do poema) está muito próximo da realidade descrita: as palavras “[n]esta” (pronome demonstrativo, do primeiro verso) e “[d]aqui” (advérbio de lugar, do quinto verso), por exemplo, exprimem essa proximidade, realçada pela predominância de verbos no tempo presente. Mas…
O amargo da realidade está em o eu lírico descrever a pobreza de quem é enterrado. Nenhum morto enterrado em tal cemitério tem direito a um enterro digno, a um caixão; nenhum, portanto, vem “vestido de caixão” (famoso “paletó de madeira” reescrito, e secamente, aqui). Já eram mortos ao ar-livre, muitos antes de morrerem… Basta ler, para comprovar o raciocínio, o verso treze, em que aparece um verbo (“eram”) no pretérito imperfeito — estado de vida inconcluso, contudo passado para quem vive em tempo presente.
Assim, conclusão de leitura, essa pobreza revela uma triste realidade “mística”: a morte apavora a todos, porém — e eis a conclusão — parece não garantir igualdade entre todos os homens…

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