Raphael SANZIO, A alva Madona, c. 1510. (Cf. nota de rodapé). |
Antero de Quental
Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.
Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.
Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva no colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,
Selvas, mares, areias do deserto…
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!
* * * * * * *
Nesse admirável soneto, o eu lírico diz estar livre do mundo das aparências. O coração descansou na mão direita de Deus e, assim, alcançou ao Nirvana. Para ter o coração o direito ao descanso puro e divino, o eu lírico desceu a escada estreita — e real — do castelo da Ilusão (Ilusão: fonte de sofrimento para quem conheceu a pura verdade, e a dor de sofrer em vão, — dor causada pela ilusão). Escada estreita — imagem ecoando aqui o caminho estreito que leva o verdadeiro crente ao “Reino de Deus” pregado por Cristo (Mateus 7, 13-14).
O mundo das aparências, da ilusão, como “as flores mortais” (belezas enganosas e passageiras) que enfeitam falsas verdades não duradouras (“A ignorância infantil, despojo vão”), é abandonado. É um mundo cuja forma é transitória (tempo) e imperfeita. O eu lírico, portanto, renuncia à ilusão, a esse mundo de “caminho largo” — da perdição, assim podemos dizer —, para alcançar a verdadeira paz.
Os últimos versos, de beleza inquietante, revelam em mística imagem a paz alcançada pelo coração. Como uma criança que a mãe protege — e ela, protegendo-a, atravessa, “sorrindo vagamente”, as dificuldades existentes nos caminhos da vida (“Selvas, mares, areias do deserto…”) — o poeta embala ao seu coração “liberto”, fazendo-o dormir na mão de Deus, e eternamente…
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O poema de Antero de Quental, em um certo momento de comparação, descreve uma criança protegida pela mãe que atravessa “[s]elvas, mares, areias do deserto…” (verso doze) — Eis o motivo da exposição desse quadro. Há no poema, para quem não sabe, uma referência sugestiva ao episódio da fuga da família de Cristo para o Egito (Cf. Mateus 2, 13-18).
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