Comissão da verdade já! (Vala de Perus)


VALA DE PERUS
Edson Luís de Almeida Teles
(Da página virtual Desaparecidos políticos)

Em 1990, no dia 4 de setembro, foi aberta a vala de Perus, localizada no cemitério Dom Bosco, na periferia da cidade de São Paulo. Lá foram encontradas 1.049 ossadas de indigentes, presos políticos e vítimas dos esquadrões da morte. Seis presos políticos deveriam estar enterrados nesta vala, de acordo com os registros do cemitério: Dênis Antônio Casemiro, Dimas Casemiro, Flávio Carvalho Molina, Francisco José de Oliveira, Frederico Eduardo Mayr e Grenaldo de Jesus da Silva.
O cemitério Dom Bosco foi construído pela prefeitura de São Paulo, em 1971, na gestão de Paulo Maluf e, no início, recebia cadáveres de pessoas não identificadas, indigentes e vítimas da repressão política. Fazia parte de seu projeto original a implantação de um crematório, o que causou estranheza e suspeitas até da empreiteira chamada a construí-lo. Este projeto de cremação dos cadáveres de indigentes, do qual só se tem notícia através da memória dos sepultadores, foi abandonado em 1976. As ossadas exumadas em 1975 foram amontoadas no velório do cemitério e, em 1976, enterradas numa vala clandestina.
A família dos irmãos Iuri e Alex de Paula Xavier Pereira, após diversas tentativas para encontrar seus restos mortais em cemitérios da cidade de São Paulo, descobriu que Iuri estava enterrado no cemitério de Perus, quando do enterro de um tio seu neste mesmo cemitério em dezembro de 1973. Passado algum tempo, a família mostrou ao administrador do cemitério a notícia de jornal onde estava relatada a morte de Alex e indicava o nome falso utilizado por ele durante a clandestinidade, João Maria de Freitas. Assim, o administrador encontrou nos livros de registro do cemitério uma pessoa enterrada com aquele nome. Essa descoberta despertou os familiares para a utilização de identidade falsa para o sepultamento de militantes políticos assassinados.
Em junho de 1979, a irmã de Iuri e Alex, Iara Xavier Pereira, relatou essas informações aos familiares de mortos e desaparecidos políticos reunidos no III Encontro Nacional dos Movimentos de Anistia, no Rio de Janeiro. Ainda no mês de junho, alguns familiares foram ao cemitério de Perus e localizaram outros militantes mortos e enterrados sob identidade falsa como Gelson Reicher, enterrado com o nome de Emiliano Sessa, e Luís Eurico Tejera Lisbôa, enterrado como Nelson Bueno. Esses novos dados levaram outros familiares a iniciarem suas buscas em cemitérios a partir dos nomes falsos utilizados por seus parentes na clandestinidade.
Em julho de 1979, a família de Flávio Carvalho Molina, assassinado em 7 de novembro de 1971, soube de sua morte através de documentos anexados a um processo na 2ª Auditoria da Marinha, sem no entanto, jamais ter recebido alguma comunicação, mesmo que informal. Na documentação, a Auditoria é informada da morte de Flávio, cujo corpo havia sido enterrado como indigente no cemitério Dom Bosco, em Perus, com o nome falso de Álvaro Lopes Peralta, na cova n. 14, rua 11, quadra 2, gleba 1 e registro n. 3.054. Seus familiares tentaram exumar seus restos mortais, quando descobriram que os mesmos já haviam sido exumados em 1975 e reinumados em uma vala comum. Naquela ocasião, nada pôde ser feito devido à repressão política vigente no país.
Em 1990, o repórter Caco Barcellos, investigando a violência policial através de laudos necroscópicos do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo, redescobre a vala clandestina e tal acontecimento alcança grande repercussão na imprensa. Em seguida, os familiares dos mortos e desaparecidos políticos obtêm o apoio da prefeita Luiza Erundina, que criou a Comissão Especial de Investigação das Ossadas de Perus.
Os familiares exigiram a transferência das ossadas para o Departamento de Medicina Legal da UNICAMP, pois no IML/SP ainda atuavam médicos legistas que assinaram laudos falsos de presos políticos mortos em tortura. O diretor do IML, nessa época, Dr. José Antônio de Melo, assinou o laudo necroscópico de Manoel Fiel Filho, assassinado sob tortura no dia 16 de janeiro de 1976, no DOI-CODI/II Exército. Os familiares, o Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV), a Anistia Internacional e a Americas Watch convidaram o Dr. Clyde Collins Snow e a Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF) para colaborarem com o Departamento de Medicina Legal da UNICAMP na catalogação e identificação das ossadas encontradas na vala de Perus. No entanto, não puderam trabalhar nas pesquisas de identificação, pois a equipe de medicina legal da universidade não concordou com sua participação.
Entre 17 de setembro de 1990 e maio de 1991 instalou-se na Câmara Municipal de São Paulo uma CPI para investigar as irregularidades da vala de Perus. Em novembro de 1990 foi assinado o Convênio entre o Estado, a Prefeitura de São Paulo e a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), por um período de 1 ano, com o objetivo de identificar as ossadas. Neste período iniciou-se, também, o Inquérito Policial n. 10/90, na Seccional Oeste, presidido pelo Dr. Jair Cesário da Silva para apurar as responsabilidades pelo uso da vala clandestina. Em dezembro de 1990, as ossadas devidamente catalogadas e embaladas foram transferidas para o DML/UNICAMP. Até o final de 1992 obteve-se duas identificações de presos políticos cujos restos mortais estavam na vala clandestina: Dênis Antônio Casemiro, considerado desaparecido, e Frederico Eduardo Mayr.
O trabalho da Comissão Especial de Investigação das Ossadas de Perus e da CPI estenderam seus trabalhos a todos os cemitérios da capital ou cidades vizinhas. Assim, outras ossadas foram encaminhadas ao DML/UNICAMP para investigação com fins de identificação. Do cemitério de Perus três esqueletos de covas individuais foram identificados como sendo os de Hélber José Gomes Goulart, Antônio Carlos Bicalho Lana e Sônia Maria de Moraes Angel Jones. No mesmo cemitério, os esqueletos da cova onde estaria enterrado Hiroaki Torigoe e os de outra cova onde estaria Luís José da Cunha foram retirados e enviados para o DML/UNICAMP. Até hoje, nenhum resultado sobre a investigação foi divulgado.
Do Cemitério de Campo Grande, em São Paulo, identificou-se a ossada de Emanuel Bezerra dos Santos. Comprovou-se que José Maria Ferreira Araújo, morto em São Paulo, em 23 de setembro de 1970, foi sepultado no cemitério de Vila Formosa. Porém, mudanças na disposição de algumas quadras do mesmo impossibilitaram a localização dos restos mortais de José Maria. Algumas ossadas desse cemitério foram transferidas para a UNICAMP e, segundo seu Departamento de Medicina Legal, já teriam sido devolvidas ao cemitério, sem contudo, divulgar qualquer relatório a respeito.
Em 29 de abril de 1991 foram trazidos do cemitério de Xambioá, sul do Pará, dois esqueletos de supostos guerrilheiros do Araguaia. Um pertenceria a Francisco Manoel Chaves e o outro a Maria Lúcia Petit da Silva. Apenas o laudo de identificação de Maria Lúcia Petit da Silva foi entregue à família em 15 de maio de 1996. Às demais famílias foram entregues cópias de laudos de identificação em papel sem timbre da universidade e sem assinatura.
A partir de 1993, com o término do mandato da prefeita Luiza Erundina, nenhum informe oficial sobre as investigações das ossadas foi transmitido. Apesar das dificuldades para se chegar ao término das identificações, no local onde se encontrava a vala foi erguido um memorial de autoria do arquiteto Ricardo Ohtake, inaugurado em 26 de agosto de 1993.
Em 17 de maio de 1995 realizou-se reunião para se exigir a prestação de contas a respeito da pesquisa com finalidade de identificar as ossadas de Perus e demais cemitérios. Soube-se, então, que fragmentos ósseos dos seis militantes mortos, já identificados pelo DML, haviam sido encaminhados para a Alemanha. Enviaram também fragmentos ósseos de esqueletos não identificados à Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, para a extração de DNA. Estabeleceu-se a criação de uma Comissão para garantir a transparência dos trabalhos de investigação do DML. Afiançou-se que as ossadas seriam devolvidas ao cemitério de Perus somente após o término das pesquisas e em condições previamente acertadas com os familiares e, mais uma vez, o DML comprometeu-se a enviar relatório detalhado a respeito da investigação realizada.
Após um ano sem resposta da UNICAMP, os familiares, através da interferência do Secretário da Justiça do Estado de São Paulo Belisário dos Santos Jr., reuniram-se com o reitor daquela universidade José Martins Filho, o Secretário Adjunto da Secretaria da Segurança Pública, Luiz Antônio Alves de Souza, os deputados estaduais Renato Simões e Wagner Lino e Suzana Lisbôa, representante da Comissão Especial de Reconhecimento dos Mortos e Desaparecidos. Decidiu-se pelo afastamento do Dr. Badan Palhares do processo de investigação das ossadas de Perus; o envio de médicos legistas da Secretaria de Segurança para acompanharem a investigação; a participação de perito internacional como observador; o envio de questionário elaborado pelos familiares com todas as dúvidas a serem explicadas pela reitoria. Badan Palhares foi substituído por José Eduardo Bueno Zappa, e o médico legista Carlos Delmonte foi encaminhado pela Secretaria da Segurança Pública para o DML/UNICAMP. As respostas fornecidas através da Procuradoria Geral da UNICAMP foram evasivas e contraditórias.
Em abril de 1997 os familiares receberam cópias do relatório “Projeto Perus” assinado pelo Dr. Zappa e do ofício do Dr. Carlos Belmonte. Tanto o relatório (primeiro documento oficial do DML/UNICAMP a respeito das ossadas) quanto o ofício do médico legista da Secretaria de Segurança foram evasivos e dedicados a elogiar o Departamento de Medicina Legal.
Em fevereiro de 1998 foi criada uma Comissão Especial para sugerir as providências necessárias à conclusão dos trabalhos de identificação dos mortos e desaparecidos políticos, presidida pelo médico legista Dr. Antenor Chicarino e composta por familiares e representantes das Secretarias da Cultura e da Justiça do Estado de São Paulo. A Comissão, após realizar vistoria nas dependências do DML/UNICAMP, constatou a precariedade do acondicionamento das ossadas e o comprometimento das investigações, pois estas estavam em sacos abertos e sem identificação jogados ao chão sujo de lama, devido à inundação que atingiu o prédio, e com pesados móveis sobre os mesmos. Diante dessa situação, a Comissão indicou a transferência das ossadas para o Instituto Oscar Freire do Departamento de Medicina Legal da USP e a participação de perito internacional como observador, e que tal transferência somente fosse realizada após minuciosa averiguação da real situação das ossadas, quando se estabeleceria um prazo para o término das investigações.
O relatório da Comissão Especial contendo as propostas acima mencionadas foram entregues aos Secretários da Justiça e da Segurança Pública em abril de 1998, sem contudo, receber qualquer resposta das autoridades. Em março de 1999, membros da Comissão Especial extinta realizaram reunião com o atual Secretário da Segurança Pública do Estado de São Paulo, Marco Vinícius Petroluzzi, o qual comprometeu-se a responder às soluções propostas em abril de 1998.
Em 31 de março de 1999, a família de Flávio Carvalho Molina propôs Medida Cautelar Incidental com pedido de concessão de liminar para produção de prova, afim de instruir a Ação de Ressarcimento de Danos proposta em 1992 “() no sentido de determinar a imediata perícia ─ exame de DNA nas ossadas que restam na UNICAMP, possivelmente, nos grupos I ou II (inicialmente chamados amostra Camp ─ 1), conforme relatório “Projeto Perus”, fls. 21, mais precisamente as que receberam os números 240 e 57 (fls. 25) ()” para identificação de seus restos mortais. A ação solicita que caso a UNICAMP não possa realizar tal prova pericial, que as ossadas sejam transferidas para local seguro onde se realize o exame necessário.
Outras valas clandestinas foram abertas. No Rio de Janeiro, em 16 de setembro de 1991, o Grupo Tortura Nunca Mais obteve apoio para exumar 2.100 ossadas de uma vala no cemitério de Ricardo de Albuquerque. Os corpos de mortos e desaparecidos foram enterrados em uma cova rasa e cinco anos depois transferidas para o ossário geral. No início da década de 80 enterraram em uma vala clandestina todos os ossos de pessoas sepultadas como indigentes desde 1971 até 16 de janeiro de 1974.
Reuniu-se, então, uma equipe formada por dois médicos legistas indicados pelo Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ), Gilson Souza Lima e Maria Cristina Menezes, a arqueóloga e professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Nancy Vieira, e a antropóloga e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Eliane Catarino. Em outubro de 1991, a Equipe Argentina de Antropologia Forense representada por Luis Fondebrider, Mercedes Doretti e Silvana Turner realizou um treinamento técnico com a equipe e orientou os trabalhos de catalogação dos ossos. Infelizmente, as ossadas quando transferidas do ossário geral para a vala foram misturadas, formando um conjunto de cerca de 430 mil ossos, entre os quais não se distingue um esqueleto completo. Mesmo assim, vários crânios e outros ossos foram retirados e acondicionados em 17 sacos plásticos para serem examinados.
Em março de 1993, a equipe encerrou o trabalho devido à falta de financiamento e à impossibilidade de sustentá-lo com apenas três pessoas. As ossadas catalogadas foram guardadas no Hospital Geral de Bonsucesso. O local da vala continua sendo resguardado, onde no futuro pretende-se construir um Memorial. Os nomes dos 14 presos políticos enterrados nesta vala são: Ramires Maranhão do Vale e Vitorino Alves Moitinho, ambos desaparecidos; José Bartolomeu Rodrigues da Costa, José Silton Pinheiro, Ranúsia Alves Rodrigues, Almir Custódio de Lima, Getúlio de Oliveira Cabral, José Gomes Teixeira, José Raimundo da Costa, Lourdes Maria Wanderley Pontes, Wilton Ferreira, Mário de Souza Prata e Luís Guilhardini. Outros dois militantes foram sepultados em valas comuns no Rio de Janeiro: no cemitério de Cacuia está Severino Viana Colon e no de Santa Cruz, Roberto Cieto.
No cemitério de Santo Amaro, em Recife (PE), os despojos dos mortos da “Chacina da Chácara São Bento” foram enterrados em uma vala clandestina. Em 1973, o delegado da polícia paulista Sérgio Paranhos Fleury, orientado pelo cabo Anselmo, organizou a ação policial que matou militantes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) em suposto tiroteio naquela chácara. As pesquisas realizadas na Comissão Especial de Reconhecimento dos Mortos e Desaparecidos Políticos instituída pela Lei 9.140/95, comprovam que todos foram presos e torturados antes de serem levados para a chácara São Bento. Não foi possível realizar as investigações nessa vala, pois as ossadas não foram separadas em sacos plásticos, o que torna inviável os trabalhos de identificação. Estão enterrados na vala do cemitério de Santo Amaro: Eudaldo Gomes da Silva, Evaldo Luís Ferreira de Souza, Jarbas Pereira Marques, Pauline Reichtul e Soledad Barret Viedma. A esposa de José Manoel da Silva conseguiu resgatar seu corpo antes que fosse transferido para a vala clandestina, mas somente em março de 1995 pode enterrá-lo em sua cidade natal.

Sobre as mulheres


O pequeno documentário aqui apresentado demonstra qual o papel da mulher no mundo capitalista (leia-se “capetalista”). É interessante analisar como o discurso ideológico, nas palavras que evoco de K. Marx, mascara a real organização da sociedade.

Entre rios (e discursos da vanguarda conservadora)


Eis aí um belíssimo documentário, que nos revela não só a arquitetura da cidade de S. Paulo, mas também os discursos da modernidade conservadora.
Eis a sinopse acerca do documentário, elaborada pelos idealizadores:

Entre Rios conta a história de São Paulo, e como ela está totalmente ligada aos seus rios. Muitas vezes, no dia a dia frenético de quem vive [em] São Paulo, eles passam despercebidos e só se mostram quando chove e a cidade para. Mas não sinta vergonha se você não sabe onde se encontram esses rios! Não é sua culpa! Alguns foram escondidos de nossa vista e outros vemos só de passagem, mas quando o trânsito para nas marginais podemos apreciar seu fedor. É triste mas a cidade está viva e ainda pode mudar!
O video foi realizado em 2009 como trabalho de conclusão de Caio Silva Ferraz, Luana de Abreu e Joana Scarpelini no curso em Bacharelado em Audiovisual no SENAC-SP, mas contou com a colaboração de várias pessoas a que temos muito a agradecer.
(Mais informações: http://asmargensdoprogresso.wordpress.com/)

Direção:
Caio Silva Ferraz

Produção:
Joana Scarpelini

Edição:
Luana de Abreu

Animações:
Lucas Barreto
Peter Pires Kogl
Heitor Missias
Luis Augusto Corrêa
Gabriel Manussakis
Heloísa Kato
Luana Abreu

Câmera:
Paulo Plá
Robert Nakabayashi
Tomas Viana
Gabriel Correia
Danilo Mantovani
Marcos Bruvic

Trilha Sonora:
Aécio de Souza
Mauricio de Oliveira
Luiz Romero Lacerda

Locução:
Caio Silva Ferraz

Edição de Som:
Aécio de Souza

Orientadores:
Nanci Barbosa
Flavio Brito

Orientador de Pesquisa:
Helena Werneck

Entrevistados:
Alexandre Delijaicov
Antônio Cláudio Moreira Lima e Moreira
Nestor Goulart Reis Filho
Odette Seabra
Marco Antonio Sávio
Mario Thadeu Leme de Barros
José Soares da Silva

A lucidez de Antonio Candido: Análise dos anos 1930


É gratificante ver Antonio Candido trazer detalhes de um período de mudanças no Brasil da Era Vargas (1930-1945), analisando de perto as nuanças da obra de Graciliano Ramos.

Presença viva da morte: Dois poemas em análise

Capela dos Ossos, Évora/ Portugal. Tal monumento lembra-nos da transitoriedade da vida.
UMA IDEIA FIXA

REDUNDÂNCIAS
Ferreira Gullar

Ter medo da morte
é coisa dos vivos
o morto está livre
de tudo o que é vida

Ter apego ao mundo
é coisa dos vivos
para o morto não há
(não houve)
raios rios risos

E ninguém vive a morte
quer morto quer vivo
mera noção que existe
só enquanto existo

* * * * * * *
Esse poema de Ferreira Gullar (do livro Muitas vozes) é seco, direto, belamente reflexivo. A ideia de vida e morte aqui é simples e encantante, contudo redundante, repetitivo, como o próprio título do poema diz.
Para o eu lírico (a voz fictícia do poema), só quem vive tem a ideia fixa da morte; quem está morto não tem noção do próprio estado em que se encontra, estado de puro nada. Basta ler os primeiros versos para assim entendermos. 
Para o morto, em seu estado atual (redundante escrita!), não há r(a)ios (metonímia: tempestades — metáfora de tristezas e obstáculos), rios (metáfora das travessias da vida reveladas nas passagens do Tempo), e ri(s)os (metáfora das alegrias). Em verdade, para o morto nem o passado existe (oitavo verso: “não houve”/ não existiu). A repetição sonora da consoante /R/ (nono verso: “raios rios risos”), sem a pausa forçada das vírgulas, dá a impressão de passagem veloz das imagens da vida — imagens condenadas ao nada.
Contudo, estando ou vivo, ou morto (contraposição de termos opostos — antítese), ninguém vive a morte em si (eis um paradoxo belamente simples). O vivo não sabe o que é, de fato, a morte, e o morto não sabe que está morto (e nem tem consciência desse não saber…): a noção de morte só existe para quem está vivo. Bela contradição, e contradição da vida!…
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O DESEJO MORTAL DE QUEM VIVEU VERDADEIRAMENTE

MORTE
Murilo Mendes

É doce o pensamento da morte
Quando o corpo exausto de prazer ou de dor
Sofre os seus limites.
É doce o pensamento da morte

Quando o espírito enfraquecido pela revolta
Não se aplaca nem mesmo diante de Jesus.
Morte, suave música da morte,
Devolve-me ao sono inicial de antes do pecado.

Não quero os cantos celestes nem a palma da glória.
Talvez eu queira o nada absoluto:

(Até mesmo o pensamento da morte ainda é vida.)

* * * * * * *
Todos aqui se lembrarão de uma leitura analítico-interpretativa do poema “Redundâncias”, de Ferreira Gullar. Em tal poema notamos a descrição argumentativa da realidade em que se encontra o morto, — realidade, aliás, de que ele não tem noção, já que a ideia de morte pertence aos vivos. Em este poema de Murilo Mendes parece a morte ser a grande solução final (ainda que desconhecida) para o corpo que experimentara os extremos da vida (prazer/ dor).
Assim como a música, que tem o poder de acalmar a alma, a morte, para o eu lírico, tem o poder, por ele desejado, de devolver o ser a um estado de origem (o nada). A vida, assim podemos dizer, faz o espírito estar em pecado, em fraqueza — fraqueza consequência da revolta implacável.
O desejo do nada absoluto resulta da vida. Claro deixemos, o eu lírico não sabe exatamente se o seu desejo é possível, ou provável. Não quer ele a redenção (“Não quero os cantos celestes nem a palma da glória.”).
Buscando, portanto, o nada “puro”, não deseja nem o pensamento da morte, — pensamento que o revela vivo (ecoando aqui a célebre sentença de Descartes: “Penso, logo existo”). Um nada tão bem descrito por Ferreira Gullar em “Redundâncias”…

No silêncio vivo das antigas vozes

“E já não enfrentamos a morte, de sempre trazê-la conosco.”
Carlos Drummond de Andrade

… E os pássaros cantam o mel das melodias, e as flores perfuram o céu das almas, e as lágrimas fecundam a terra dos sonhos… E em nosso mundo há vozes que ainda perfuram o ar que respiramos; vozes que ainda se desenham — e silenciosamente!… — em nossa memória.
Não deve haver, contudo, desespero. Viver não é mais que um ensaiar para o sagrado do mistério, — o segredo da morte. E, mesmo assim, outros corpos surgirão, para sorrir e chorar, de estranhas sombras crepusculares; e viverão; e passarão…
E os pássaros…
Ainda que, neste momento, no silêncio vivo das antigas vozes?…
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COM OS MORTOS
Antero de Quental

Os que amei, onde estão? Idos, dispersos,
Arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos…

E eu mesmo, com os pés também imersos
Na corrente e à mercê dos turbilhões,
Só vejo espuma lívida, em cachões,
E entre ela, aqui e ali, vultos submersos…

Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei: vivem comigo,

Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também.
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.