Sem Comentários (Segunda Edição)



UMA PIRUETA, DUAS PIRUETAS. BRAVO, BRAVO!
Lucas Limberti

O circo chegou.
Explode alegria, corre a criança, a cidade em polvorosa ouve o desfile:
– Atenção comunidade chegou o maior espetáculo da terra!!
Saltos, mágicas e palhaçadas.
O povo sorri com o coração cheio de vida vendo o desfile. Estouram foguetes, sobem balões, passam elefantes e mulheres barbadas. Na frente de todos está ele, o grande palhaço, o malandro inocente, o triste maquiado de alegria.
Alvoroçados, todos correram para as bilheterias, lotaram o espetáculo, compraram pipocas doces e salgadas e, até o fim do espetáculo, esqueceram-se da dor de ser o que eram.
Passou a temporada. A magia do circo é um sopro. Quem viu viu, quem não viu que junte seus pacotes e corra atrás da trupe.
O choro da criança alarmou, mas aos poucos cessou.
Neste farfalhar de emoções, esqueceram de avisar o palhaço da partida. Com a lona ainda montada ele foi, como deveria ser, pra sina de sua cena. Sorriu melancólico.
A maquiagem do palhaço só vale no palco; sentado no camarim ele se despede da tristeza. Afasta-se do pó e empunha seu violino para cena de seu dom e de seu tom. Mal sabe ele que hoje a plateia não vem. O circo fechou, a trupe se arrancou. E mesmo assim o palhaço apresentou-se como se aquela fosse a última vez que pisasse um picadeiro.
Após o espetáculo, sem palmas, sem risos, na companhia dos grilos o palhaço sacou um revólver da cartola colorida. Empunhou contra o centro de seu pensamento.
Disparou. Sem a magia do aplauso o místico som do disparo explodiu sua alegria.
O circo se foi.

Lembrar para esquecer

Na praia, a árvore aparenta ecoar o poema.
MODINHA
Cecília Meireles

Tuas palavras antigas
deixei-as todas, deixei-as,
junto com as minhas cantigas,
desenhadas nas areias.

Tantos sóis e tantas luas 
brilharam sobre essas linhas,
das cantigas — que eram tuas —
das palavras — que eram minhas!

O mar, de língua sonora,
sabe o presente e o passado.
Canta o que é meu, vai-se embora:
que o resto é pouco e apagado.

* * * * * * * 
“Esquecer para lembrar”, eis uma sentença paradoxal de Drummond, — aliás, título de um livro seu. Há, porém, quem busque lembrar para esquecer. Parece ser esse “lembrar para esquecer”, na passagem do tempo, a essência dessa bela canção de Cecília Meireles. Leiamos tais versos.
O primeiro verso nos revela um possível diálogo (“tuas”, pronome possessivo de segunda pessoa). As palavras, “antigas” (adjetivo que já aponta para a temporalidade do momento lembrado), foram deixadas, junto com as cantigas do eu lírico, desenhadas nas areias. Aqui já há uma alusão ao espaço marítimo de puros contrastes encarnando o Tempo e a Eternidade (areias — ruínas do tempo destruidor; mar — uma grandeza da eternidade renovadora).
Palavras compõem o ritmo das cantigas; cantigas seguem o ritmo das palavras. Assim, “minhas” palavras são cantigas; “tuas” cantigas são palavras. Confundem-se, iluminadas, as linhas que resistem aos dias (“tantos sóis”) e às noites (“tantas luas”); que, enfim, resistem à passagem do tempo (portanto dias e noites são parte de um todo, um todo que é essa passagem: metonímia). Mas a resistência não parece duradoura…
Notemos, para a leitura correta dessa resistência não duradoura, alguns detalhes importantes. Um é que, nas duas primeiras estrofes, predominam os verbos em tempo passado (“deixei”, “brilharam”, “eram”); já na terceira estrofe predominam os verbos em tempo presente (“sabe”, “canta”, “vai”, “é”). Outro detalhe, na terceira estrofe, é o desaparecimento da segunda pessoa com quem dialogava o eu lírico. Tais detalhes reforçam a ideia de algo que se perdeu nessa passagem do tempo…
O mar, de língua sonora (imagem humanizada da onda) sabe o presente e o passado (pois é uma grandeza da Eternidade). O eu lírico, solitário, pede para que o mar cante apenas o que é dele, — pois o resto é apenas fantasma de uma lembrança vivida. Lembrar para esquecer.

Vozes sublimes da melancolia — ou interpretações grotescas da verdade…

Pintura em ânfora grega, representando Ulisses tentado pelas sereias, 490 a. C.
AS SEREIAS
Franz Kafka/ tradução de Geir Campos

São as sedutoras vozes da noite: também assim cantavam as Sereias… Não fora de justiça, para com elas, atribuir-lhes o deliberado propósito de seduzir: elas bem sabiam que possuíam garras e nenhum seio fértil, e disso lamentavam-se em altas vozes — mas não tinham culpa de soarem tão belos os lamen­tos.

* * * * * * *
Doce veneno o canto das sereias… Assim como a noite que, mesmo assustando ao ho­mem, o fascina com sua voz (embora a noite não tenha voz, mas estrelas rebentadas em ternura), as sereias também sabiam seduzir, cantando, a quem se aventurava em azul beleza do imenso mar… A vivacidade do texto kafkiano está em rememorar o passado vivenciando o presente, em explosão de lirismo e mística tristeza…
Para quem não sabe, as sereias da Mitologia Grega (as sereias a quem se refere Kafka) eram monstros horripilantes, filhas do rio Achelous e da musa Terpsícore (musa da música, das nove do Olimpo). Possuíam garras e grandes asas (em A odisseia, epopeia que narra as aventuras e desventuras de Ulisses/ Odysseus, aventuras de que faz parte “o canto da sereias”), — embora cantassem docemente, atraindo marinheiros que se afogavam atirando-se ao mar para amá-las…
Aqui Kafka parece absolvê-las da injustiça dos homens. Para ele, elas lamentavam a falta de beleza corporal e, portanto, cantavam sem culpa de a voz ter alma transbordante de vivaz ma­gia. E o canto encanta. Assim como a poesia que, para Edgar Allan Poe, deve ter o timbre de la­mento (de melancolia) para atingir/ seduzir ao leitor, o canto — encanto — também deve ser belamente melancólico… A tristeza embeleza a alma…

A presença de quem se faz ausente: Fernando Pessoa

CASTAGNETO, Porto do Rio de Janeiro, 1884.
[Ó NAUS FELIZES…] 
Fernando Pessoa

Ó naus felizes, que do mar vago
Volveis enfim ao silêncio do porto
Depois de tanto noturno mal —
Meu coração é um morto lago,
E à margem triste do lago morto
Sonha um castelo medieval…

E nesse, onde sonha, castelo triste,
Nem sabe saber a, de mãos formosas
Sem gesto ou cor, triste castelã
Que um porto além rumoroso existe,
Donde as naus negras e silenciosas
Se partem quando é no mar manhã…

Nem sequer sabe que há o, onde sonha,
Castelo triste… Seu spírito monge
Para nada externo é perto e real…
E enquanto ela assim se esquece, tristonha,
Regressam, velas no mar ao longe,
As naus ao porto medieval…

* * * * * * *
Poema estranho de complexa sintaxe, ainda que lindo na simplicidade da narrativa. Percebe-se nele algo característico não só da poesia pessoana, mas também de uma muito praticada vertente da poesia moderna: a presença, sentida pelo leitor-viajante, de um eu lírico que se faz ausente (“Meu coração é um morto lago/ E à margem triste do lago morto/ Sonha um castelo medieval…”, versos de pura arte do estranhamento…). Ainda que o coração do eu lírico seja um lago morto (morte: ausência), esse “lago morto” tem a noção exata de sonhar, à sua margem, (espaço também do coração) um castelo medieval (sonhar: vivacidade, presença de espírito). Ao sonhar o castelo, o coração ocupa o espaço dele, espaço onde se encontra uma triste castelã de belas mãos (ocupante do castelo) que ignora a existência de um porto, de onde partem naus (navios) ao amanhecer — naus que atravessam a escuridão maligna dos mares…
Não só ignora a existência de outras naus, mas também ignora a existência do próprio espaço em que se encontra, espaço onde sonha o coração, que o imaginara à margem do lago morto, lago morto que é o coração… Castelã que se esquece, estando triste, enquanto naus de existência ignorada por ela regressam ao porto medieval.
Atentemos agora para a sintaxe: notemos que o pronome demonstrativo “[n]esse” está separado do substantivo “castelo” (algo incomum na língua portuguesa). Tal procedimento ocorre outras vezes (versos oito e nove, treze e quatorze). Pausas forçadas feitas por vírgulas e reticências, exigindo quase total silêncio (palavra cuja ideia aparece, consideravelmente, no poema), o coração, contudo, se transborda em beleza de imaginação pura — um coração que se faz ausente na presença do leitor…
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A versão deste poema é uma cópia cedida por Fernando Pessoa, em 1912, a Luís de Montalvor. Há outra versão, com o título "Sonho", datada em 10 de junho de 1910.

Pavorosa aceitação do silencioso mundo... Kafka!


PEQUENA FÁBULA
Franz Kafka/ tradução de Modesto Carone

“Ah”, disse o rato, “o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra, que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro.” — “Você só precisa mudar de direção”, disse o gato e devorou-o.

* * * * * * *
Tão vasto o mundo… muitas possibilidades de vivê-lo… mas… como vivê-lo? A resposta parece angustiante, e — talvez — inalcançável. Para Kafka, ela nem existe ou, se existe, assim como a esperança, não existe para o Homem: “há esperança, mas não para nós”.
O ratinho da fábula, portanto, é o Homem; as paredes, a Razão. Expliquemos, antes que o leitor entenda erradamente a conclusão do raciocínio já exposta. A Razão ajuda a delimitar, até um certo ponto, os nossos atos de vida; inspira confiança. Contudo a vida (eis a nossa descoberta!) já é delimitada por forças incompreensíveis. Assim, a Razão não é mais que a compreensão dessas forças (paradoxal verdade!). O ratinho parece saber a direção de seu caminho: a ratoeira (ratoeira — possível morte).
O gato é o mistério — o sem sentido, o absurdo, o inexplicável — na narrativa (para os místicos, já é um animal misterioso por natureza). Aconselha o rato a mudar de direção, sem, contudo, dar a ele a oportunidade de mudar. Talvez o rato já tivesse tido, sem saber, essa oportunidade; talvez o gato tivesse ironicamente justificado o seu conselho devorando o rato (garantindo, aliás, a sua alimentação e, estranhamente, cumprindo o seu instinto de sobrevivência). No universo kafkiano, portanto, nada é explicável; tudo é, em silêncio, imenso e assustador… Não há resposta… E nunca haverá… “O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora” (Pascal).
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Mais tarde haverá outra análise desse conto, escrita por Modesto Carone.

Poesia Concreta

Reflexão da angústia, revelações do Nada...

Alfredo VOLPI, Marinha, c. 1941.
OCEANO NOX
Antero de Quental

Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo dum pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente…

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais…

* * * * * * *
Belo, e triste, esse poema: ainda que em um tom de revolta velada, o eu lírico deseja, inquietante, compreender tudo. Para um leitor atento às intenções poéticas, a Natureza aqui reflete o olhar de quem deseja compreender. O mar não pode erguer a “trágica voz rouca” (mar não tem voz, e, não a tendo, nem pode ela ser trágica e rouca, — qualidades, aliás, humanas). Já se pode adivinhar, portanto, o dono da voz trágica. Tudo isso em um movimentar contínuo do passado: “erguia”, “passava” — movimentar na lembrança do eu lírico. E é nesse movimentar que o poeta surge pontualmente (pretérito perfeito): “sentei-me”, “interroguei”. Pura narração da imagem do tempo, que fica na memória para ser lembrada em imagem fraturada.
Os seis últimos versos irrompem no tempo. O poema deixa de ser narrativo (a predominância dos verbos no pretérito), para ser dramático (a predominância agora é dos verbos no presente: “tortura”, “gravitais”). O eu lírico não mais narra, mas revive o momento. Para reforçar a dramaticidade, palavras carregadas de angústia: “inquieto”, “tortura”. E um sussurro sonoro de /s/ repete-se neste verso, evocando a ideia de um queixume, de um triste bramido: “Mas na imensa extensão, onde se esconde/ O inconsciente imortal […]”. Queixume, bramido, tudo parece suave como o balanço das ondas. Parece… Basta ler em voz alta, porém contida nas pausas que as palavras exigem.
Há, é claro, uma compreensão difícil de compreender: o último verso é a chave de tudo, um tudo que é a revelação do nada. Um nada onde tudo é inimaginável em sua grandeza: “imensa”, “imortal”…

Diamante em chamas: Manuel Bandeira

O ÚLTIMO POEMA
Manuel Bandeira

Assim eu quereria o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

* * * * * * *
Muitos poetas, para tocarem a sensibilidade do leitor, exageram, enfeitando, as imagens de seus versos. Contudo a maioria nem sempre consegue alcançar o efeito desejado, pois faltam-lhe espontaneidade, simplicidade e pureza das palavras.
No poema em análise (aliás, último poema do livro Libertinagem), exprimindo o desejo de querer elaborar um “poema/ Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais […]”, Manuel Bandeira, aparentemente sem exagerar as imagens, toca a sensibilidade do leitor, realizando a intenção manifestada no tecido da linguagem. Mas “aparentemente”… Embora, à luz de uma primeira leitura, tudo pareça espontâneo, simples e puro, o poeta oculta, e bem, a complexidade que emana das imagens. Assim, o leitor atento às nuanças da poesia deve se perguntar: como os diamantes, que riscam qualquer material por terem o mais alto grau de dureza, se destroem na pureza da chama, do fogo? Como os suicidas, na loucura da paixão, se matam sem nada explicar, pois, afinal, é da natureza deles tudo explicar?
Tais perguntas, entretanto, são inúteis, ainda que revelem, pela linguagem do pensamento, sutilezas paradoxais de vida e morte. O poeta, aqui, deseja um poema de beleza simples e sincera — portanto uma beleza sem qualquer explicação racional, como as flores que lembram vida, contudo quase sem perfume, pois já em presságio de morte.

Sem Comentários (edição primeira) - Parte 2


TRABALHADOR INFORMAL E DIREITOS SOCIAIS
Sidnei Fernandes Cruz
(Do Sindicato dos Queixadas/ Perus)

O trabalho informal (sem carteira assinada) cresceu muito no Brasil na década de 90, devido ao desemprego estrutural (quando o posto de trabalho é eliminado) causado pelas mudanças tecnológicas (substituição de trabalhadores por máquinas). Como a política dominante à época era o neoliberalismo, o Governo Federal não previa absorção desses trabalhadores desempregados através de programas de geração de emprego e renda. Além disso, só havia a preocupação em privatizar, gerando ainda mais desemprego e descapitalizando o país, que praticamente foi à falência na metade do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.
Nesse quadro de desemprego, só restou às trabalhadoras e aos trabalhadores “tentarem se virar”, assumindo trabalhos precários, geralmente por conta própria, buscando sua subsistência. São os vendedores de trem, dos CDs piratas, das “bugigangas chinesas” (artigos de baixa qualidade: brinquedos, utensílios domésticos, roupas etc.). Em todo o Brasil, principalmente nas grandes cidades, esse quadro se repete. Atualmente, com as políticas públicas de geração de emprego e renda, a informalidade vem diminuindo, sendo que a cada mês é quebrado um novo recorde de geração de empregos com carteira assinada. Porém, uma imensa parcela da população permanece na informalidade, tendo pouco acesso aos benefícios sociais garantidos aos empregados formais.
Com relação ao acesso à saúde, esses trabalhadores e trabalhadoras informais, como todos os brasileiros, têm acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS), que tem caráter universal. Portanto, embora o atendimento não seja aquele que todos nós desejamos, pelo menos nesse aspecto não ficam a descoberto, diferentemente do que acontece, por exemplo, nos Estados Unidos, onde NÃO EXISTE qualquer sistema público de saúde — só existem planos de saúde privados, e quem não tem, simplesmente não recebe qualquer atendimento.
Porém, com relação à previdência social, os trabalhadores informais não têm direito a qualquer benefício: não têm direito à aposentadoria; se ficarem doentes ou se acidentarem, não recebem auxílio-doença; se falecerem, seus dependentes não recebem qualquer pensão. É um quadro totalmente injusto para com esses trabalhadores e trabalhadoras que estão nessa situação por absoluta falta de opção. Por isso, a inclusão do setor informal na Previdência Social tem que ser uma preocupação de toda a sociedade.
Algumas propostas começaram a surgir, nos últimos anos, inclusive por parte do Governo Federal. A maioria dessas propostas aponta para a inclusão através de contribuições à Previdência Social com alíquotas menores do que as normalmente pagas pelos trabalhadores formais. Assim, os trabalhadores informais ficariam cobertos pela Previdência, tendo acesso aos mesmos benefícios que os trabalhadores formais. Vale lembrar que já existe um projeto de lei em discussão no Congresso Nacional sobre o assunto. Embora não resolva todos os problemas, é o primeiro passo que pode e deve ser dado. Somente assim, essa iníqua desigualdade de classes poderá começar a desaparecer. Por fim, vale lembrar que mesmo aqueles que trabalham em empresas, mas não tem registro em carteira também são considerados informais e não têm nenhum direito previdenciário assegurado. Também temos que combater este tipo de informalidade.

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PARA DELIRAR…
Glauco Martins

A minha i(LUZ)são se acabou quando as lâmpadas se apagaram: fiquei, assim, lançado à escuridão; perdido como uma mariposa que acabara de se desviar da morte já esperada numa luz encantadora. Naquele momento, cheguei até a pensar que era melhor estar perdido, distante do caminho seguido pelos meus irmãos, do que estar morto. Pensamento que pode ser sintetizado nesta célebre frase: “É melhor a ausência de luz, do que uma luz trêmula e incerta que só serve para extraviar o caminho de quem a segue”.
Agora eu sei que enquanto estive iluminado, pouco sabia sobre mim e todas as coisas. Por isso, já nasci rendido, predestinado a seguir o caminho apontado, caminhando com os apetrechos que me eram concedidos e repeli tudo quando a luz falsa se apagou, como havia de ser feito, ou nunca tido necessidade de se fazer.
Na escuridão, tive que procurar outras luzes, as verdadeiras; aquelas que assim como nós são tão imperfeitas. E assim vou seguindo, em meio à escuridão, desviando das luzes falsas, rodeando as verdadeiras; mas nunca nelas pousando, que é para estender a vida até as últimas energias…

Sem Comentários (edição primeira) - Parte 1


CEM ANOS DE JOSUÉ DE CASTRO: O QUE MELHOROU? 
Leandro Castro

Há cem anos, na cidade de Recife, nascia Josué Apolônio de Castro. Oriundo de uma família modesta, forma-se em medicina aos 21 anos e, aos 29 anos, em filosofia. Sua inquietação humanística o lançou à procura de respostas frente ao problema da fome. 
Com suas pesquisas fisiológicas, pôde reconhecer os malefícios causados pela ausência de uma alimentação adequada, desvendando, assim, uma das perspectivas da fome, que dizia ele serem três: a biológica, a econômica e a social. 
Josué denunciou que ao imperialismo econômico interessava tratar a alimentação apenas no âmbito da distribuição e comercialização de alimentos; por esse motivo mascarava as injustas relações que estabeleciam nos países periféricos. Via ele, assim, o subdesenvolvimento como um produto direto do desenvolvimento, e não como ausência de desenvolvimento. Já em meados do século passado tinha a clareza de que, para haver desenvolvimento, teria de haver subdesenvolvimento, pois este caráter exploratório é intrínseco ao sistema capitalista vigente. 
Quanto ao fator social, vivendo em uma sociedade racionalista na qual estava inserido, os instintos primários — como o sexo e a fome — deveriam ser colocados em segundo plano, não deveriam vir à tona. Nesse sentido, a ciência tem sua parcela de culpa ao não assumir que, mesmo após tantos avanços, não conseguiu melhorar as condições de vida da humanidade. 
Entre a sua formação em medicina e a Segunda Guerra Mundial, teve vasta publicação de livros, sendo estes os mais importantes: Geografia da Fome e Geopolítica da Fome, livros publicados em 25 idiomas, que tornaram referência mundial no assunto. 
No ano do centenário de Josué de Castro, a fome continua posta como assunto do dia. Assistimos à elevação dos preços dos alimentos, à discussão frente aos prováveis problemas de abastecimento gerados pelos biocombustíveis, a programas assistencialistas passíveis de discussão. De fato, percebem-se poucas melhorias no que tange à questão. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), morrem anualmente no mundo cerca de 840 mil crianças em decorrência da inanição ou da sub-alimentação. 
O nosso eminente intelectual denunciou a fome, apontou as causas e, principalmente, as soluções. Porém nos perguntamos: o que foi feito?

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MORRE O MITO
(CONSIDERAÇÕES SOBRE MICHAEL JACKSON)
Acauam Oliveira (Do blog “Escapar fedendo”)

Morre o maior mito da história da música pop, o gênio Michael Jackson. O fim da era das grandes gravadoras tem agora seu marco.
A única necessidade imutável do mercado é a mudança contínua. Michael Jackson levou a sério o pressuposto e o conduziu a seu limite, marcando em seu próprio corpo a volubilidade do mercado pop. Dessa forma, sem se dar conta e contra sua vontade, acabou por revelar o caráter monstruoso do processo, o quanto ele carrega de negação de identidade. Pagou o preço por incorporar em si a essência do mercado, fazendo inocentemente (ele nunca cresceu de fato) o que Marlyn Manson faz de modo crítico e distanciado, e Madonna e David Bowie (nos primórdios) fizeram por meio de personagens. Michael, por ser mais talentoso, foi mais sincero e assumiu o caráter fictício do mundo pop como verdade. Ele era negro e branco, heterossexual e gay, adulto e criança, anjo e  monstro, sexy e virgem, transitando por entre todas as categorias assim como a música pop (na qual ele foi um dos maiores mestres, quase seu sinônimo) tem a vocação intrínseca de juntar todas as manifestações artísticas do planeta em uma só forma. Nesse ponto o pop faz as mesmas promessas que o capitalismo: um mundo onde todas as diferenças aparecem conciliadas por uma mão invisível, o próprio espírito absoluto. O corpo (no sentido amplo, sua “figura”) de Michael — evidência inegável — revelava o caráter deformado da utopia mercadológica, que se oculta mediante estratégicas classificatórias, como público, tribo e, no plano formal, gênero. Michael era inclassificável, um antissujeito, realização maior — e por isso mesmo, inconfessável — da sociedade de consumo. Nem como rebelde ele podia ser classificado (ou como ET), porque sua “deformidade” devia-se, em última instância, a um apego excessivo — no limite da autonegação — à norma. A estratégia midiática foi procurar associar a imagem ao imaginário, criando um monstro sem nariz ou etnia (por isso nem mesmo enquadrável em alguma minoria qualquer), comedor de criancinha.
O maior mito do mundo pop acreditou e incorporou visceralmente a própria mitologia, revelando desse modo a face negativa que o mercado, para sua própria sobrevivência, precisa esconder. Por essa razão, mais do que por qualquer outra acusação, real ou fictícia — nunca se provou nada, é sempre bom lembrar, diferente do que aconteceu com o pedófilo do Peter Touschand, muito menos importante — é que Michael foi perseguido e esculhambado, especialmente por aqueles que ajudaram a criar o mito.
Fica a música, e o talento. Esse sim, inquestionável. Que seja bem encaminhado pelos braços de Omolu, até o colo de Nanã.

Procura da reflexão

Você faz parte II, de Nelson Leirner.
PROCURA DA POESIA
(Fragmento)
Carlos Drummond

[…]

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

* * * * * * *
A beleza desse fragmento de um grande poema de Carlos Drummond (“Procura da poesia”, do livro A rosa do povo) — está em o eu lírico (a voz fictícia do poeta) convidar o interessado em poesia a contemplar, refletindo(-se), o mundo misterioso das palavras, que revela mais que um simples nomear. Em poesia, logo, as palavras não têm os mesmos significados que os de um dicionário. O poeta, assim, é um mágico que tem o poder de fazer qualquer coisa (“em estado de dicionário”/ “face neutra”) transcender-se em os mais belos sentidos da vida, sentidos místicos, não muito facilmente decifráveis, embora decifrá-los seja entender toda a magia, e nada mais além importar. Mas… “Se o homem soubesse tudo não saberia mais nada”, sentencia o poeta Murilo Mendes. As palavras exigem uma decifração (“Trouxeste a chave?”), embora saibamos que elas se escondem na noite (mistério) para rolarem em um rio difícil — a travessia da leitura — e se transformarem em desprezo, pois que o Homem moderno busca resposta concretas, e não o encanto, puro e misterioso, da existência. Aprendamos, assim, a ver como se dá o espetáculo da poesia…
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Você Faz Parte II (foto de divulgação), de Nelson Leirner, pertence ao acervo MAC-USP. É curiosa esta obra de arte pois, assim como o poema de Drummond, também convida o interessado em contemplar o mundo a ser parte da contemplação, pois sem aquele que contempla tudo fica vazio. Para quem não sabe, na fechadura em que não se vê chave há um espelho que reflete aquele que contempla.